Entre Margens

domingo

Neruda

Vi este poema num blog e não resisti. Copiei-o.

"Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade."

Pablo Neruda

quinta-feira

Amor que morre

O nosso amor morreu...
Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há-de vir!

Florbela Espanca

terça-feira

Poema da Auto-Estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
De impaciente nervura.

Como guache lustroso,
Amarelo de indantreno,
Blusinha de terileno
Desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.

Agarrada ao companheiro
Na volúpia da escapada
Pincha no banco traseiro
Em cada volta da estrada.

Grita de medo fingido,
Que o receio não é com ela,
Mas por amor e cautela
Abraça-o pela cintura.

Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
Corta a lambreta afiada,
Engole as bermas da estrada
E a rumorosa folhagem.

Urrando, estremece a terra,
Bramir de rinoceronte,
Enfia pelo horizonte
Como um punhal que se enterra.

Tudo foge à sua volta,
O céu, as nuvens, as casas,
E com os bramidos que solta
Lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
Já nem percebe, Leonor,
Se o que lhe chega aos ouvidos
São ecos de amor perdidos
Se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.

António Gedeão (quem mais? :)