Entre Margens

domingo

Ser Poeta ...

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens!
Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim ...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente ...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

sábado

Um dos meus poetas predilectos...


Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.


Mário de Sá-Carneiro

"Outro"

Lisboa, Fevereiro de 1914.



Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



Mário de Sá-Carneiro

"Quase"

Paris, 13-5-1913


E quem não conhece este ...

Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É nunca contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

sexta-feira

Um poema para a época que se aproxima

Natal Up-to-Date

Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década

Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lajedo em redor é de pedras da Lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco

David Mourão Ferreira

quarta-feira

E agora eu ...

Porque pertenço a uma sociedade que não me agrada e porque às vezes me sinto desajustada, aqui ficam algumas palavras que não são minhas mas que bem poderiam ser ...


Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me o ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,

Mas como quem sente a natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o Sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.


Alberto Caeiro

segunda-feira

Um improviso - para começar

Não me explicas esse sorriso?
Então também não te digo
como é que eu consigo
sorrir sem que vejas

São cócegas de dentro, que nascem dos dedos dos pés e brotam nos pêlos da nuca

E não me ensinas como se beija?
Deixa
Vou deixar-te curiosa
sem te contar

Como é que a minha alma
beija uma rosa
sem que se desfaça

E as pétalas que vejas cair
não caem sem graça

Estão apenas a correr para a cama
escapando do orvalhado
que não as deixa dormir

O Inverno esconde-as de mim

É que assim ainda vão a tempo
de se tapar do frio
que corre da nortada do mar

E lá vão amornando
nos bafejares da tua boca
que lhes toca com esse cetim

Vão a correr enquanto sonham
para não se perderem no ar

Não vá o vento enganá-las
como só ele sabe fazer
àquelas rosas de amar.


O meu poema preferido - para começar

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


Ricardo Reis, 14-2-1933